terça-feira, 14 de julho de 2009

A brusca poesia da mulher

Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado

Minha irmã, conta-me histórias da infância em que que eu haja sido

herói sem mácula

Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a

bilirrubina

Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder

cinco quilos

Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para

as confidências

E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas

Alinhadas sobre a mesa, as pontas prestes à poesia.

Eis que se anuncia de modo sumamente grave

A vinda da mulher amada, de cuja fragrância

já me chega o rastro.

É ela uma menina, parece de plumas

E seu canto inaudível acompanha desde muito a migração dos

ventos

Empós meu canto. É ela uma menina.

Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina

Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes

Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos

Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos

Para cantar seus réquiens e os falsos profetas

A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas mentiras.

Mas nada a detém; ela avança, rigorosa

Em rodopios nítidos

Criando vácuos onde morrem as aves.

Seu corpo, pouco a pouco

Abre-se em pétalas... Ei-la que vem vindo

Como uma escura rosa voltejante

Surgida de um jardim imenso em trevas.

Ela vem vindo... Desnudai-me, aversos!

Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!

Alvoroçai-me, auroras nascituras!

Eis que chega de longe, como a estrela

De longe, como o tempo

A minha amada última!

Vinicius de Moraes

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